Entrevistas

Entrevista com Leopoldo de Méis

Leopoldo de Meis não é conhecido nacional e internacionalmente apenas por suas pesquisas na área de Bioquímica, mas também pelo seu esforço persistente em tornar a ciência algo compreensível para o público leigo...

Leopoldo de Meis

Leopoldo de Meis não é conhecido nacional e internacionalmente apenas por suas pesquisas na área de Bioquímica, mas também pelo seu esforço persistente em tornar a ciência algo compreensível para o público leigo. Médico formado pela Universidade Federal do Rio de janeiro (UFRJ), professor titular de Bioquímica no Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ, nasceu em 1938 na cidade de Suez, no Egito, passou os primeiros meses de sua vida no Cairo, a infância em Nápoles, na Itália, e aportou no Brasil com sua família em 1947. De Meis é um dos mais importantes divulgadores da ciência no Brasil. Ele iniciou essa trajetória na década de 50, quando escrevia um suplemento dominical chamado Ciência para o Jornal do Commércio. Na década de 80 criou o projeto Ciência e Arte, que une artistas e cientistas até hoje com o objetivo de estimular o aprendizado de ciência entre jovens estudantes. O primeiro trabalho desenvolvido no âmbito desse projeto foi o livro em quadrinhos O Método Científico, em formato de gibi, que conta a história da ciência e o surgimento do método científico. Depois lançou A Respiração e a 1ª Lei da Termodinâmica ou... A Alma da Matéria, onde percorre a trajetória de filósofos e cientistas em busca de leis capazes de explicar a natureza. O Projeto também lançou os vídeos A Mitocôndria em Três Atos, que detalha o funcionamento da organela, A Explosão do Saber, sobre a expansão do conhecimento, e A Contração Muscular, que trata deste mecanismo orgânico. Ele concedeu a seguinte entrevista para a Aba Popularização da Ciência do CNPq:

Como surgiu seu interesse pela ciência?

Assistindo a uma palestra do Dr. Walter Oswaldo Cruz Filho. Todos os anos fazíamos uma reunião entre estudantes do Rio e São Paulo - a semana de debates científicos -, quando eram selecionados alguns trabalhos para uma reunião mais ampla, com estudantes do Brasil inteiro. Numa dessas reuniões o palestrante foi Oswaldo Cruz, em 1966. Depois da palestra ele anunciou que havia três vagas para Princípios da Iniciação Científica em seu laboratório em Manguinhos, no Rio de Janeiro, e quem quisesse poderia se inscrever. Ele marcou as entrevistas em sua própria casa e, quando cheguei lá, fiquei espantado com a quantidade de candidatos. Todos pensávamos que teríamos que fazer uma prova sobre Hematologia, sua especialidade. Estudei muito, não porque estava interessado em fazer ciência, mas porque vivia numa penúria danada e o salário que ele oferecia era uma fortuna para mim: 3 contos, o equivalente hoje a 300 dólares.

E a prova, como foi?

Ele não perguntou nada sobre Hematologia, não estava nada interessado em nossa vida acadêmica. Ficava mostrando cartoons e piadinhas da revista norte americana The New Yorker e nos inquiria sobre a essência do humor nos quadrinhos. Depois, gentilmente nos dispensou avisando que chamaria os selecionados na primeira etapa. Passou um tempo e ele telefonou para mim e a outros quatro candidatos para um segundo teste, mas agora no laboratório. Vibrei, pois era um dos selecionados. O laboratório possuía uns equipamentos muito complicados e perguntava para que eles serviam. Em vez se tentar adivinhar, declarei que não sabia. Para meu espanto ele balançava a cabeça em sinal de aprovação e pedia para fazer um esforço de imaginação, o que me obrigava a buscar um papel hipotético para a geringonça . Tinha clareza naquele teste que estava mais interessado nos 3 contos de salário do que na ciência. Coisa mesquinha. Pois na verdade, achava que queria ser cirurgião.

E por que o senhor não seguiu a carreira de cirurgião?

Arrumei um estágio no 1º ano em uma enfermaria de cirurgia e em um ano cheguei a ser o segundo auxiliar do cirurgião. Em pouco tempo tinha evoluído bem no aprendizado, mas para meu horror, descobri que ficava com sono durante a cirurgia. Não tinha vocação por aquela linda especialidade médica. Desisti disso porque seria um perigo para os pacientes. Depois fui fazer clínica, ainda como estudante, e tornei a ficar com sono. O sono só sumia quando trabalhava com o Dr. Walter. Depois de cinco anos ele me obrigou a decidir se ia ou não ser pesquisador. Respondi na hora que sim, queria ser pesquisador. O fator decisivo foi o sono que vinha abruptamente na busca de minha possível vocação e lá, no laboratório do Dr. Walter, não tinha sono. Em retrospecto, lembrando o teste de seleção inicial, me parecia que para Dr. Walter fazer ciência eram necessárias umas boas doses de bom humor (o teste dos quadrinhos do New Yorker), e de intuição, para descobrir como funcionava seu equipamento. Com o passar do tempo, passei a concordar com a visão de ciência de meu mestre.

E a divulgação científica, quando teve início?

No fim de 1958, um grupo de cientistas conseguiu um espaço amplo no Jornal do Comercio (1 página inteira) publicada regularmente aos domingos. O resultado desta paródia foi que a bola caiu no nosso colo. Walter chamou em seu gabinete a mim e outro colega, Peter Von Dietich, e com um tom que não aceitava recusa informou "meninos, agora, alem de pesquisadores, vão ser também jornalistas. Tratem de produzir uma página por semana sobre ciência para o Jornal do Commercio". Naquela época o jornal tinha uma boa circulação. Fomos nos apresentar ao chefe do Jornal do Comercio que nos recebeu com uma boa dose de irritação. Não havia espaço para nos acomodar, mas nas 5a feiras tínhamos que lhe entregar a matéria e ir na impressão para conferir a paginação.

O senhor considera que Walter Oswaldo Cruz Filho foi seu incentivador na divulgação científica?

Claro, veja a criação da página do Jornal do Commercio.

O senhor criou um projeto chamado Ciência e Arte. Como surgiu esta idéia?

Coisas estranhas que acontecem com a gente. Já era professor e pesquisador e tinha até carro. Não era de luxo, mas era mais ou menos confortável. Classe média típica. Havia muitos pivetes nas ruas do Rio de Janeiro e todos ficavam assustados quando viam algum por perto. Um dia, parado num semáforo, um deles fazia arte jogando bolinhas para o alto. Mas, antes da apresentação, se preocupou em levantar a camisa para mostrar que não portava armas, no caso gilete que pudesse cortar, machucar. Durante muitos anos sempre fechava a janela do carro ao parar no semáforo, mas naquele dia algo aconteceu comigo, alguma coisa como uma tomada de consciência repentina. Afinal, o que eu estava fazendo era fechar a janela para os meninos pobres do Rio de Janeiro.

O senhor estava sozinho no carro?

Não, estava com minha esposa e comentei com ela logo que arranquei que aquela minha postura era desumana, no que ela concordou. De repente me dei conta de que por muitos anos fechava os vidros do carro com medo de nossas crianças pobre. Foi naquele momento que decidi fazer alguma coisa em prol daqueles meninos.

Alguma idéia já surgia em sua mente?

Não idéias, mas obsessão. Tinha que fazer algo para aquele drama que só então me dei conta. Tornou-se importante para mim pelos menos aliviar aquela sensação horrível de culpa que só então me tinha dado conta. Ficou clara que tinha que ser algo que eu sei fazer em um grau aceitável, isto é, Ciência e dar aulas não convencionais.

Ir onde estava o problema, ou seja, nas favelas, não era uma boa opção?

Ir para as favelas e pregar não eram do meu feitio, era preciso fazer alguma coisa de prático. Tinha que fazer uma coisa que soubesse fazer bem, ou seja, ensinar e pesquisar. Decidi então, junto com meus estudantes de pós-graduação, fazer um curso experimental para meninos de baixa renda. Escolhíamos um tema como por exemplo a fotossíntese. As turmas tinham cerca de 30 alunos cada. Os atores principais eram os próprios jovens que tinham que embolar e realizar experimentos. 

E hoje, qual o estágio da ciência brasileira?

A nossa ciência já pode ser considerada de 1º mundo, somos muito menos que os Estados Unidos e Japão, mas não somos mais minoria em número de cientistas. A ciência brasileira hoje é respeitada em todo o mundo e ocupamos a 12ª ou 13ª posição no ranking de produção científica. Mas na educação, não, estamos na rabeira. Esse ainda é um dos nossos problemas. Nossa posição no ranking internacional de educação, nos comparamos talvez com a república dos Camarões. Alguns fazem ciência, muitos educam, mas a educação que dão é incompetente e por isso não conseguimos nos classificar como bons educadores.

Mas, voltando ao assunto do projeto Ciência e Arte...

Criei um curso, juntamente com estudantes de pós-graduação, nas séries escolares. Cada um de nós ia para as escolas explicar o que era o curso, que nós pagaríamos a alimentação e o transporte. Esperávamos uma meia dúzia de interessados, mas para a nossa surpresa veio uma avalanche de estudantes afirmando que queriam fazer o curso. Formamos grupos de 30 alunos e ministrávamos o curso nas férias escolares, durante uma semana, nos laboratórios de pesquisa da Universidade do Brasil, hoje UFRJ. Eles ficavam impressionados, colocavam a melhor roupa que tinham porque, afinal, iriam para a universidade.

Como eram esses cursos?

Eles chegavam ao laboratório com lápis e papel pensando que iriam assistir a uma aula, mas não havia aula alguma. Escolhíamos um tema, por exemplo, fotossíntese. Iniciávamos dando uma aula trote, ou seja, uma alua fictícia, ensinando tudo errado. Depois sugeríamos que não acreditassem em tudo que ouvissem porque isso não significava que os locutores eram bons no que estavam falando. O objetivo era mostrar a eles que alguém falar bem, de voz alta, não significa que esteja transmitindo conhecimentos corretos. Depois dividíamos os alunos em grupos e os estimulávamos a descobrir algum aspecto fotossíntese. Os jovens meninos (15 a 20 anos de idade) se mobilizavam. Iam ao jardim, colhiam algumas plantas, colocava em frente a luzes de cores diferentes, faziam o que quisessem para descobrir o que é fotossíntese. Os monitores ficavam apenas orientando onde estava o equipamento que pediam. Ao final do curso, sempre convidávamos algum cientista para falar sobre o tema que estudaram, e os alunos, que já conheciam o mínimo do assunto, faziam perguntas bem interessantes.

Esses alunos, depois do curso, manifestavam algum interesse em continuar fazendo pesquisas?

Sim, muitos deles. Diante do interesse manifestado, acabei por criar vagas de assistente de pesquisa para eles trabalharem com estudantes de pós-graduação. Eles eram entrevistados e os selecionados ganhavam uma bolsa equivalente ao que eu ganhava quando era assistente de Walter Oswaldo Cruz. Iam dois dias por semana aos laboratórios da universidade e muitos deles se tornaram cientistas. Com essa iniciativa acabávamos matando dois coelhos com uma só cajadada: o estudante de pós-graduação aprendia com o assistente o que era o outro lado da vida, a vida dele na favela, enfim, uma sociedade que ele não conhecia; do outro lado, o pós-graduando mostrava ao menino o que era ciência e também o ajudava em suas dificuldades nas tarefas escolares. Só no meu laboratório, desses jovens carentes assistentes que passaram por essa experiência, mais de 60 se tornaram mestres, doutores e professores universitários, o que é muito recompensador e comovente.

Essa iniciativa se espalhou para outras instituições?

Sim. O professor Vargas, da Universidade de Minas Gerais e funcionário do Banco do Brasil, soube do trabalho que realizávamos e nos ofereceu dinheiro - pouco é verdade - para que difundíssemos o projeto em outras unidades do ICB - Instituto de Ciências Biológicas. Cerca de 8 ou 10 grupos ficaram interessados, um deles coordenado pelo cientista Roberto Lent, e que continua até hoje desenvolvendo atividades de divulgação científica. Quando o dinheiro acabou, nenhum grupo deu continuidade às atividades, exceto o grupo de Lent.

O senhor não conseguiu outra fonte de financiamento para dar continuidade ao projeto?

Depois disso, apareceu o "Vita", um órgão internacional que financiava artes, ciências, educação e junto com o Prof. Paulo Arruda e outros fomos bater à porta da fundação e fomos muito bem recebidos e contemplados com uma quantia substancial de dinheiro.

Essa parceria durou até quando?

Tempos depois fomos chamados à Fundação e fiquei surpreso com a notícia de que a instituição estava encerrando suas atividades no Rio de Janeiro e que tinha que gastar em curto espaço de tempo todo seu orçamento em projetos que obtiveram sucesso na época. Perguntaram a mim e ao Paulo se estávamos disposto a ampliar o programa e ficamos espantados porque também nos perguntaram: "quanto os senhores querem para formar mais 10 grupos? " Ficamos atônitos. No meu caso nunca ninguém me perguntou quanto que eu queria. O normal era perguntar quanto o mínimo eu precisava. Pensei um pouco e disse de chofre que precisaríamos de 1 milhão, sem acreditar no que tinha falado. Mas a resposta foi positiva e mais ainda, pagaram tudo que pedimos. Assim, foram formados mais 10 grupos pelo país. Hoje, há uma rede com mais de 40 laboratórios trabalhando em todos os estados brasileiros, que se reúnem anualmente para discutir idéias e projetos.

 

Equipe Popularização da Ciência
popciencia@cnpq.br

Mostrando 6 - 6 de 6 resultados.
Itens por página 5
de 2

Navegue pelo mapa do Portal Navegue pelo mapa do Portal

Outros Sites
 
De segunda a sexta das 8h30 às 18h30
+55 61 3211 4000
 
 
SHIS QI 1 Conjunto B - Blocos A, B, C e D
 
 Lago Sul - Brasília.DF - Cep: 71605-001
 
 Horário de funcionamento do CNPq
Segunda a sexta - 8h30 às 12h00 e 14h00 às 18h30