-
Gioconda Mussolini (1913-1969)Antropóloga
Gioconda Mussolini (nascida em São Paulo em 1913) foi a primeira mulher, no Brasil, a fazer da Antropologia Social a sua profissão, tendo sido docente e pesquisadora na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, desde 1935 até o dia da sua morte, em maio de 1969.Gioconda Mussolini (nascida em São Paulo em 1913) foi a primeira mulher, no Brasil, a fazer da Antropologia Social a sua profissão, tendo sido docente e pesquisadora na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, desde 1935 até o dia da sua morte, em maio de 1969.
Ela foi a terceira das sete filhas de Umberto Mussolini (nascido em Veneza em 1886 e emigrado para o Brasil em 1888) e de Adalgisa Vieiga (nascida em 1889, filha de pai português e mãe brasileira). A família paterna foi se estabelecendo, aos poucos, nos bairros do Bom Retiro, da Luz e dos Campos Elísios, desenvolvendo atividades comerciais e industriais no setor alimentício. Gioconda formou-se como professora primária, em 1931, na Escola Normal Padre Anchieta. Logo no começo de 1933, ingressou oficialmente no quadro do ensino público paulista, nomeada para o Grupo Escolar de Pariquera-Assu, então distrito rural de Jacupiranga, no litoral sul do estado. Mas a permanência na região do baixo Vale do Ribeira será logo interrompida pela admissão, ainda em 1933, no Curso de Aperfeiçoamento de Professores Primários que funcionava no Instituto Pedagógico "Caetano de Campos", na Praça da República, e que, como a própria Gioconda escreveria num Currículo de 1965, "equivalia aos dois primeiros anos do Curso de Pedagogia da Faculdade de Filosofia" da USP.
É este o verdadeiro ponto de virada na carreira e na trajetória de Gioconda Mussolini, que, a partir de então, seria aluna, entre outros, de Fernando de Azevedo, Almeida Jr., Noemy da Silveira Rudolfer. Além desses, Gioconda entra em contato com outros docentes, alguns dos quais pouco mais velhos que ela: alguns estarão entre os seus colegas na FFCL, a partir de 1935, como Anita de Castilho, Marcondes Cabral e Zenith Mendes da Silveira. Em outras palavras, em 1933, iniciam os estudos superiores de Gioconda Mussolini, na primeira turma desse novo Instituto de Educação. É a primeira e única da frátria a dar esse passo, dado contemporaneamente aos primeiros passos do próprio ensino superior paulista, se atentarmos para o fato de que, até este ano, só existiam as Escolas "profissionais": Direito, Medicina e a Politécnica. A Escola Livre de Sociologia e Política também abria as suas atividades em 1933, e a USP, ao criar a Faculdade de Filosofia e ao reuni-la àquelas escolas e a este Instituto de Educação, só surgiria em 1934.
Embora não tenhamos maiores informações sobre as suas atividades e a sua rotina, basta o nome e a estrutura de um dos laboratórios do IE para compreendermos a sua importância na formação de Gioconda: o Laboratório de Pesquisas Sociais e Educacionais contava com um Centro de Documentação Etnográfica e Social e com um Museu de Etnografia. Nesse biênio na "Praça", então, Gioconda Mussolini teve acesso à "degustação" de um variado cardápio de novos sabores intelectuais, que lhe aguçaram um apetite a ser saciado, já a partir do ano seguinte, no curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia. Afinal, para uma moça em volta dos seus vinte anos de idade, nascida e criada no Bom Retiro, devem ter sido extraordinárias as experiências proporcionadas por um grupo de educadores também num momento decisivo e especial das suas atuações institucionais. Por sua vez, o lugar desse conjunto de práticas é também um lugar múltiplo: o Caetano de Campos tinha posição e função centrais nesse quadrante da educação pública paulista. Nela convergiam elementos de um campo que me parece estar, ao mesmo tempo, em formação e em ponto de mutação, com a presença e a participação de médicos, higienistas, pedagogos, juristas, psicólogos, estatísticos, sociólogos.
Em 1935, Gioconda entra na então denominada sub-Seção de Ciências Sociais e Políticas da recém criada Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras da USP, como integrante da segunda turma de ingressantes naquela instituição e como "professora primária comissionada"[1], ou seja, dispensada, com vencimentos, das suas atividades docentes. Pertence àquele "grupo de jovens, animado de grande ardor para o trabalho, conhecendo perfeitamente as suas possibilidades, mas sabendo também que, antes de mais nada, são professores e que por esta razão foram enviados à Faculdade", na definição de um dos seus mais destacados professores, o geógrafo francês Pierre Monbeig[2].
Mulher, e com sobrenome imigrante[3], Gioconda Mussolini encaixa-se bem no perfil dos alunos da FFCL a partir do seu segundo ano de funcionamento, um grupo social muito diferente do preconizado pelos seus mentores, e também bem distinto do perfil daqueles que se encaminhavam para as antigas faculdades profissionais já existentes[4]: os filhos da elite paulista.
Ela assiste às aulas ¿ ministradas sempre em francês ¿ de alguns dos professores daquela que ficou conhecida como a "missão francesa": Paul Arbousse Bastide, Claude Lévi-Strauss e Roger Bastide (Sociologia), Pierre Monbeig (Geografia), Fernand Braudel (História) e Jean Magüé (Filosofia), entre outros. São seus colegas de turma Gilda de Mello e Souza (então Moraes Rocha), Mário Wagner Vieira da Cunha, Ruy Coelho, Décio de Almeida Prado e Egon Schaden. Este, procedente de uma família de origem alemã, do interior de Santa Catarina, é destinado a desempenhar um papel de grande relevância na vida e na carreira de Gioconda. O nome dela figura, também, na conhecida listagem do (agora consagrado) antropólogo Lévi-Strauss em Tristes Trópicos (1955):
"[...] Pensando em vós, segundo vosso costume, por vossos nomes de batismo tão barrocos para um ouvido europeu, mas cuja diversidade exprime o privilégio que foi ainda o de vossos pais, de poder livremente, de todas as flores de uma humanidade milenar, colher o viçoso buquê da vossa: Anita, Corina, Zenaida [sic], Lavínia, Thaís, Gioconda, Gilda, Oneide, Lucilla, Zenith, Cecília, e vós, Egon, Mário Wagner, Nicanor, Ruy, Lívio, James, Azor, Achilles, Décio, Euclides, Milton [...]"[5].
O envolvimento de Gioconda com os seus professores e, há de se presumir, o seu bom ou mesmo ótimo rendimento escolar, fizeram com que ela se destacasse entre os seus colegas e, ainda em 1935, recebesse convite do recém criado Departamento Municipal de Cultura de São Paulo, dirigido por Mário de Andrade, para atuar como "pesquisadora social", mais especificamente na "Divisão de Documentação Histórica e Social", chefiada, à época, por Sergio Milliet e pelo engenheiro checo Bruno Rudolfer (ambos do grupo de fundadores da Escola Livre de Sociologia e Política), e que contava também com a participação de Luís Saia, arquiteto-engenheiro e futuro integrante da "Missão de Pesquisas Folclóricas" de 1938, e do sociólogo e estatístico norte-americano, Samuel H. Lowrie (também docente da ELSP). Esse período também compreende a sua participação na criação da "Sociedade de Etnografia e Folclore", ao lado de boa parte dos primeiros professores de Gioconda e de alguns dos seus colegas de Faculdade: Roger Bastide, Pierre Monbeig, Plínio Ayrosa, Paul Arbousse-Bastide, Lévi-Strauss, Lavínia Costa Vilella, Lucilla Herrmann, Mário Wagner, Emilio Willems, Oneyda Alvarenga, além, é claro do próprio Mário de Andrade.
Licenciada em 1937, Gioconda Mussolini volta a lecionar no Grupo Escolar da Vila Prudente, mas, logo em 1938, é admitida como "membro do Centro de Pesquisas e Documentação Social" da Cadeira de Sociologia I da FFCL, regida então por Paul Arbousse Bastide (mas que mudará de chefia em 1941, com Roger Bastide, que havia chegado, nesse mesmo ano de 1938, em substituição de Lévi-Strauss, de regresso à Europa) e onde, mais tarde[6], se tornaria Auxiliar de Ensino. A pessoa responsável pelo convite, portanto, deve mesmo ter sido Arbousse Bastide, seu ex-professor. Gioconda ficará colaborando com ele durante três anos (até 1941) e mais três anos (até 1944) com Roger Bastide. A contratação de Gioconda na Cadeira se dá com a fórmula do "comissionamento, sem prejuízo dos vencimentos do cargo efetivo", ou seja, mantendo o cargo e o salário de professora primária, desenvolve as suas atividades na Faculdade de Filosofia.
Em 1944 ("comissionada" nas mesmas condições anteriores), transfere-se para a Cadeira de Antropologia, criada em 1941 e regida pelo professor alemão Emilio Willems, de quem Gioconda se tornaria, no começo, 2a. assistente. Em 1951, ela será promovida a 1a. assistente, no lugar de Egon Schaden, que substituíra Willems, a caminho dos Estados Unidos, onde assumirá o posto de Professor de Antropologia na Vanderbilt University, em Nashville .
Um ano após ter migrado da Cadeira de Sociologia à de Antropologia, Gioconda defendeu a dissertação de mestrado (Os meios de defesa contra a moléstia e a morte em duas tribos brasileiras: Kaingang de Duque de Caxias e Bororó Oriental), na ELSP, em que ingressara em 1941 e onde tinha sido aluna de, entre outros, Donald Pierson, Herbert Baldus, Willems, Sergio Milliet e, durante a sua rápida passagem pelo Brasil (1942-1943), A. R. Radcliffe-Brown. Entre os seus colegas, ainda Lucila Herrmann, Oracy Nogueira, Virginia Leone Bicudo e, no último ano, também Florestan Fernandes, com que Gioconda estabeleceria uma longa e firme amizade. É nesse contexto, portanto, que ela se torna, ainda mais "oficialmente", uma antropóloga. E é esse ano de 1944 que marca o começo da sua atuação nesse campo disciplinar, com as primeiras pesquisas, em comunidades caiçaras no Litoral Norte de São Paulo, as primeiras publicações e a orientação de estudantes, alguns dos quais se tornariam nomes importantes da Antropologia Brasileira: Ruth Cardoso, Eunice Durham, Antonio Augusto Arantes ¿ sobretudo[7].
A relevância de Gioconda Mussolini para a antropologia brasileira desdobra-se em três direções. Primeiro, por ela ter protagonizado os primórdios do ensino na disciplina, numa instituição pioneira como a FFCL da USP, concorrendo para a formação de muitos cientistas sociais, alguns dos quais ativos até hoje; segundo, pela sua contribuição ao campo da "antropologia da doença", através da sua dissertação de mestrado, defendida na Escola Livre de Sociologia e Política, em 1945; finalmente, e sobretudo, o nome dela é referência fundamental para os estudos brasileiros sobre pesca, sobre cultura e organização social de comunidades litorâneas em geral e das populações caiçaras do litoral de São Paulo, em particular. O campo da antropologia da pesca tem no nome de Gioconda Mussolini uma espécie de "mãe fundadora". Suas reflexões ainda orientam os estudos de muitos pesquisadores contemporâneos. Na primeira e na terceira dessas três direções, não é mais nem tanto o "pioneirismo" a ser marca de reconhecença, mas as novidades teóricas, metodológicas e epistemológicas que ela tentou introduzir na sua produção acadêmica, a despeito da sua reduzida dimensão e da dispersão a que ela foi submetida.
Essas novidades determinaram tanto o clima (ora negativo ora indiferente) com que os seus trabalhos foram recebidos no lugar específico em que eles eram situados (a Cadeira de Antropologia da USP, onde ela lecionou de 1944 a 1969), quanto a sua própria escassez, pois ao seu conjunto falta justamente a peça que lhe arremataria o sentido: a (quase) desaparecida tese de doutoramento[8]. Mesmo assim, o conjunto de artigos e outros textos de Gioconda Mussolini parece mais que suficiente para que a sua figura reassuma a posição central que, como professora de sala de aula, todos lhe reconhecem. Essa tese, aliás, é a pedra de toque, ainda que parcialmente ausente, para os demais trabalhos que ela conseguiu concluir e publicar. Estes, por sua vez, iluminam o vazio que seria ocupado pela tese, numa tentativa de imaginar uma solidez coerente, representada pela sua contribuição às ciências sociais do país.
Principais obras de Gioconda Mussolini
1944: Notas sobre os conceitos de moléstia, cura e morte entre os índios Vapidiana. Sociologia, 6 (2).
1945: O Cerco da Tainha na Ilha de São Sebastião Sociologia, 7 (3). Agora disponível em: http://www.pesnochao.org.br/databank/documento02.pdf
1946: O Cerco Flutuante: uma Rede de Pesca Japonesa que teve a Ilha de São Sebastião como Centro de Difusão no Brasil. Sociologia, 8 (3). Agora disponível em: http://www.pesnochao.org.br/databank/documento03.pdf
1950: Os "Pasquins" do Litoral Norte de São Paulo e suas peculiaridades na Ilha de São Sebastião.Revista do Arquivo Municipal, CXXXIV. Agora disponível em: http://ufdc.ufl.edu/UF00023425/00001/1x
1952: Buzios Island: a Caiçara Community in Southern Brazil (com Emilio Willems).
1953: Aspectos da cultura e da vida social no litoral brasileiro. Revista de Antropologia, 1 (2). Agora disponível em: http://www.pesnochao.org.br/databank/documento01.pdf
1955: Persistência e mudança em sociedades de folk no Brasil, Anais do XXXI Congresso Internacional de Americanistas, vol. I. Agora disponível em: http://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/45609.
1963: Os japoneses e a pesca comercial no litoral norte de São Paulo. Revista do Museu Paulista, 14. Agora disponível em: http://www.pesnochao.org.br/databank/documento04.pdf
1969 (org.): Evolução, Raçae Cultura (Leituras de Antropologia Física).
Póstumas:
1980: Ensaios de Antropologa Indígena e Caiçaras (org. de Edgard Carone e Introdução de Antonio Candido ¿ reúne os artigos de tema marítimo e a dissertação de mestrado).
2003: A Ilha de Búzios: uma comunidade Caiçara no Sul do Brasil (com Emilio Willems, tradução do livro de 1952).
Autoria do verbete:
Andrea Ciacchi é professor associado de Antropologia na Universidade Federal da Integração Latino-Americana. Desde 2005, vem se dedicando a pesquisas sobre história do pensamento antropológico no Brasil e, a partir de 2010, sobre pensamento social na América Latina. Seu livro, História Social de uma Antrópologa: Gioconda Mussolini em São Pauloestá pronto e à espera de uma editora. A pesquisa que lhe deu origem (e a este verbete) foi financiada pelo CNPq, entre 2005 e 2007, com uma bolsa de pós-doutorado, sob a supervisão da professora Heloisa Pontes, do DAN/UNICAMP.
[1] Cfr. LIMONGI, Fernando (2001). A Escola Livre de Sociologia e Política em São Paulo. In: S.Miceli (org.). História das Ciências Sociais no Brasil. Vol. 1, II ed. São Paulo:Vértice, pp.257-275.[2] Apud Ibidem, p. 191.
[3] A essa altura (1935), um sobrenome já muito "sonoro": Benito Mussolini conquistara o poder na Itália em 1922, assumindo-o ditatorialmente em 1924, e ainda é aliado de Getúlio Vargas. Como se sabe, a ruptura entre o Brasil e os países do eixo só se daria na virada entre 1941 e 1942.
[4] LIMONGI (2001:197).
[5] LÉVI-STRAUSS, Claude (1996).Tristes Trópicos. São Paulo:Companhia das Letras, p.99-100. Dessa lista, Anita de Castilho e Marcondes Cabral (Psicologia), Gilda de Mello e Souza (Estética), Lavinia Costa Vilela (Sociologia), Zenith Mendes da Silveira (Economia) e Lucila Herrmann (Sociologia) também são "pioneiras da ciências".
[6] Não localizei a data desta promoção na documentação da USP.
[7] No contexto deste verbete, não há como esmiuçar o resto da carreira acadêmica e científica de Gioconda Mussolini. Permito-me remeter à leitura de CIACCHI, Andrea.Gioconda Mussolini: uma travessia bibliográfica. Revista de Antropologia. 2007, vol. 50, n.1, pp.181-223. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-77012007000100005
[8] A tese, sob a orientação do catedrático (segundo os hábitos uspianos da época) Egon Schaden, nunca chegou a ser defendida, aparentemente porque ela nã conseguiria escrevê-la. Na realidade, ela havia redigido quase 500 folhas, que, porém, não foram julgadas adequadas para formarem uma tese apta a ser defendida. Nessas circunstâncias, Gioconda não pôde assumir a titularidade da Cátedra de Antropologia, quando da aposentadoria de Schaden, em 1967.
Navegue pelo mapa do Portal
- Geral
- Acesso à Informação
- Institucional
- Organograma
- Competências
- Base Jurídica
- Conselho Deliberativo
- Agenda de autoridades
- Diretoria Executiva
- Comitês de Assessoramento
- Comissão de Integridade
- Quem é quem
- Propriedade Intelectual
- Normas
- Comissão de Ética Pública
- Gestão de Documentos
- História
- Servidores
- Estatísticas e Indicadores
- Horário de atendimento
- Organograma
- Bolsas e Auxílios
- Programas
- Prêmios
- Popularização da Ciência
- Comunicação
- Parcerias
- Estudantes
- Pesquisadores
- Universidades
- Empresas